POVO DE ARUANÃ

O mito de origem dos Karajá conta que eles moravam numa aldeia, no fundo do rio, onde viviam e formavam a comunidade dos Berahatxi Mahadu, ou povo do fundo das águas. Satisfeitos e gordos, habitavam um espaço restrito e frio. Interessado em conhecer a superfície, um jovem Karajá encontrou uma passagem, inysedena, lugar da mãe da gente (Toral, 1992), na Ilha do Bananal. Fascinado pelas praias e riquezas do Araguaia e pela existência de muito espaço para correr e morar, o jovem reuniu outros Karajá e subiram até a superfície.

Salve Deus!

Os trabalhos no templo seguiam seu percurso, mas os espíritos sugam muito dos mestres deixando-os sonolentos e transportando seus pensamentos além-terra.

Eu estava no comando do dia quando o povo *Aruanã chegou para manipular a energia viva a resplandecente das matas frondosas. Ontem havia sido a sessão branca, mas por motivos alheios a nossa vontade não foi realizado. Hoje eles chegaram junto com Pai João de Aruanda e já fazendo a festa do luar. As energias deste bendito povo não nos deixam padecer e quando menos os esperamos chegam para nos curar.

O que mais me agrada é saber que ela já está trabalhando espiritualmente. Muitos já a estão vendo em seus sonhos e preparando já os corações de seus amados filhos para este reencontro. Por isso os segredos ainda não são revelados para que tudo transcorra naturalmente como deve ser.

Os espíritos estão chegando de muito longe pedindo pão e água. Estão sedentos pela riqueza deste solo sagrado, como disse Cacique Aruanã, eu sou guardião desta casa, desta doutrina. Os momentos de certezas que nos dão a reflexão do jaguar pisando no terceiro milênio.

A luta é constante entre o bem e o mal. Estamos aqui registrando os fenômenos da antimatéria explodindo em variações energéticas coloridas. Luzes curadoras resplandecendo pelo universo. O que mais nos falta nesta continuidade! Nada! Estamos abastecidos pela ciência cósmica e burilamos os destinos com nossa lança de condão remexendo as almas perpetuadas nos destinos karmicos.

É tão bonito quando um jaguar sabe empunhar sua lança mágica e atravessa os carreiros terrestres em busca dos menos afortunados. O saber manejar faz muita diferença, porque é a vida e a morte distinguindo-se uma da outra. Aqui nesta doutrina nós vivemos a vida, pois a morte não tem voz, disse Seta Branca.

A fonte da água da vida jorra dia e noite aqui bem pertinho, onde Mãe Iara tem fluidificada ela todas as madrugadas. Jorra fria e como um vapor branco levanta do solo e se perde pelas matas ao redor. O orvalho curador das madrugadas que chega em forma de aroma encantado.

Assim, eu a reconheço, sei que ela já está programando sua missão novamente nestes carreiros terrestres. A sacerdotisa de todos os tempos emanando sua sabedoria e seu comando maior.

Salve Deus!

Adjunto Apurê

An-Selmo Rá

26.07.2017

* Dança dos Aruanãs

Desde que os humanos de baixo ascenderam do Fundo das Águas, os xamãs e a coletividade masculina responsabilizam-se em trazer, todos os anos, os aruanãs (irasò) – ancestrais que permaneceram morando no nível subaquático, em sua maioria – para conhecer o mundo “aqui de fora” e suas comidas diferentes. Cada aruanã é uma dupla de  personagens rituais quase idênticos, que é “entregue” ritualmente a um casal com filhos, como um presente honrado, para que este se responsabilize por sua alimentação durante todo um ciclo anual, o qual se dá, em geral, paralelamente à estação das chuvas. Os aruanãs são considerados como um “bem de valor” (nohõ) e são transmitidos dentro das famílias, ao longo do tempo, idealmente através de uma linha de primogênitos, não importando o sexo.

Segundo dizem os Javaé, o ciclo anual da Dança dos Aruanãs – cujo ápice é o complexo ritual de iniciação masculina, Hetohoky ou “Casa Grande” – só existe porque os ancestrais comparecem ao nível terrestre, trazidos pelos xamãs, feito à mãe ritual de um aruanã. Em outras palavras, os aruanãs vêm se alimentar da comida que um homem (o “pai ritual”) entrega aos seus sogros e cunhados em retribuição pela esposa.

Cada dupla de aruanãs canta e dança músicas próprias durante todo o ciclo cerimonial, que é composto por uma série de jogos rituais entre homens e mulheres e, principalmente, de “refeições/oferendas rituais coletivas” (xiwè) dentro da Casa dos Homens. O pai e a mãe ritual de uma dupla de aruanãs – podem existir várias duplas a cada ciclo, em cada aldeia – são conhecidos como os “donos de aruanã” (irasò wèdu). O “pai de aruanã” é responsável pela produção dos alimentos que serão consumidos (peixes, quelônios, caça, produtos de origem agrícola), enquanto a “mãe de aruanã” é responsável por sua preparação. A comida farta e saborosa é levada para a alimentação cotidiana dos aruanãs, na Casa dos Homens (também conhecida como Casa dos Aruanãs), onde é compartilhada por todos os homens, sem distinção. A honra do casal, conhecida por todos através das gerações, será proporcional à sua capacidade de produzir os alimentos e distribuí-los generosamente na Casa dos Homens.

Este é, aliás, um princípio geral da sociedade javaé, para quem a generosidade (wowi) e a capacidade de distribuir os bens produzidos entre os parentes e os afins são os principais valores sociais. Os “humanos honrados” (inytyhy) são as pessoas pacíficas, trabalhadoras e, principalmente, as que distribuem generosamente os bens produzidos. A preguiça, o egoísmo e a avareza estão entre os maiores defeitos que uma pessoa pode manifestar. A honra construída com o trabalho e a generosidade é cultuada pela memória oral de gerações e é o mais importante patrimônio pessoal que um homem ou uma mulher pode adquirir. Quanto mais trabalhador e generoso um casal, mais ele será agraciado pela Casa dos Homens com aruanãs e outras entidades rituais que precisam ser alimentadas ciclicamente, aumentando o valor da honra que será transmitida a seus descendentes. Os aruanãs, enquanto principal patrimônio de valor transmitido entre as famílias, são o símbolo visível de um princípio cultural – manifesto em várias práticas rituais – que valoriza o coletivo sobre o individual, a distribuição sobre a acumulação.

Segundo a cosmovisão karajá e javaé, a realidade física é inseparável da vida social e a perpetuação da cultura e do meio ambiente é parte de um mesmo e complexo processo. Os recursos naturais só existem porque os seres humanos realizam os procedimentos rituais corretos e as oferendas sagradas ao “Povo do Fundo das Águas” e ao “Povo do Céu”. De modo complementar, as oferendas das cerimônias tradicionais da Casa dos Homens só existem porque os humanos capturam os animais e peixes disponíveis que compõem as refeições especiais. De um ponto de vista interno, o fortalecimento cultural é intrinsecamente associado à preservação do meio circundante e vice-versa. As atividades produtivas tradicionais não são concebidas como destruição do meio ambiente, mas como garantia de manutenção da ordem social e cósmica, pois animais e plantas integram o circuito de reciprocidade entre humanos e divindades.

A Dança de Aruanãs está intimamente conectada à estrutura de aliança matrimonial, ou seja, de troca de esposas, à medida que as refeições rituais são a forma mais importante de retribuição alimentar de um homem aos seus afins, ainda que isso não seja expresso explicitamente. Os credores das prestações matrimoniais são associados simbolicamente ao extremo cosmológico do rio acima e ao nível superior, lugar da nutrição abundante e infinita, enquanto os devedores associam-se ao extremo do rio abaixo e ao nível inferior (Terra dos Ensangüentados), lugar das perdas energéticas constantes. A Casa dos Homens, enquanto centro da reciprocidade ritual, está situada no “meio da aldeia” (itya) por ser concebida como o principal lugar de mediação entre os afins.

Todos os Javaé filiam-se  a um dos dois grupos rituais (ou metades cerimoniais) – os Saura (“macaco prego”) e os Hiretu (“gavião carcará”) – de acordo com a linha de descendência materna. São grupos de origem mítica e de importante atuação nos jogos rituais e na cerimônia de iniciação masculina. Em vários momentos do ciclo ritual, os participantes das metades cerimoniais dramatizam o conflito entre as duas partes, o que ocorre principalmente durante as lutas rituais (ijèsu), similares na forma e conteúdo às lutas rituais dos povos do alto Xingu. Embora não regulem efetivamente a troca de esposas, os Saura, associados ao rio acima, e os Hiretu, associados ao rio abaixo, representam simbolicamente dois grupos ligados por uma tensa relação de afinidade, por meio da qual um homem deve uma retribuição aos seus afins.

Seja bem-vindo ao vale dos deuses!