Um presidiário

TIA NEIVA (18-12-81)

Certa vez, ouvi uma voz que chamava por meu nome. Ao me voltar, deparei-me com um senhor de mais ou menos 45 anos de idade, com uma aparência de espírito evoluído, que me disse:

– Tia Neiva! Eu quero lhe contar a minha história, para que sirva de exemplo aos espíritos que têm como lema a violência, acreditando que somente a vingança lava seus corações.

Acercando-se de mim, continuou:

– Era um daqueles muitos domingos que passamos na Terra, eu e minha esposa. Eu era muito amigo de meus sogros e convivíamos juntos, muito bem. Um de nossos vizinhos era muito chegado a nós, embora não tivesse uma reputação muito boa naquela cidade. E, naquele domingo fatídico, quando alegremente almoçávamos, todos reunidos, dois homens invadiram violentamente minha casa e seguraram-me pelos braços, como se todo o ódio do mundo os dominasse. E, sem saber do que se tratava, me senti ultrajado, e reagi com toda a brutalidade, tentando me defender daqueles desconhecidos. Cego pela raiva, quando dei conta de mim um dos agressores tinha fugido e o outro estava caído, morto por mim. Também jazia morto o meu vizinho José, abatido por aquele invasor que fugira. Meu sogro mandou que eu corresse para fugir ao flagrante, enquanto ele chamava a polícia. Eu era muito ingênuo para defender-me, e decidi ficar esperando pela polícia, na certeza de que tudo seria esclarecido. Não conhecia nenhum dos agressores, e não entendia aquilo. As únicas testemunhas da minha inocência, de que eu agira para me defender e proteger minha família, eram meus sogros e minha esposa.

Como eu tinha o hábito de beber, ninguém teve a coragem de testemunhar em meu favor. Também, como eu, ninguém sabia o que levara aqueles homens a invadirem meu lar, com tanta violência, e me atacarem com tanto ódio. Nas ruas, o comentário era o de que matara o pai de uma moça que eu havia desonrado. Por isso, aquele ódio todo. Só que, na realidade, estavam me imputando a culpa de um crime que eu não cometera e sim… o meu vizinho! Um terrível engano!…

Ó, Tia Neiva! Deves imaginar o que sofri. Preso, sem amparo, e a família da vítima pensando somente em vingança, passando a me perseguir. Um dia, um irmão daquele homem que morrera por minhas mãos – que eu reconheci como um dos que haviam me atacado e fora o assassino de José – foi ser carcereiro no presídio em que eu estava, e passou a fazer comigo os maiores absurdos. Cansado de tanta barbaridade, certo dia fui chamado para depor junto àquele delegado que me prendera, e me decidi por pedir a ele que me livrasse daquele horror que vinha passando. Para minha surpresa, ele se mostrou muito receptivo, e me disse com convicção:

– Se tu me ajudares, eu te ajudarei. Desonrastes a filha de Acácio e, quando ele te foi cobrar, tu o matastes. Porém, ainda não ficou esclarecido quem matou José, o teu vizinho. Fostes tu? Dizes-me… Bem poderias me dizer toda a verdade!

– Vou contar – comecei eu, mas vi, naquele instante, o meu carcereiro que entrava e me olhava com ódio. Sim, aquele era o assassino de José! Então, lembrei-me dos pais da moça que eu nem conhecia. Lembrei-me da minha pequena Nice, que eu deixara com apenas 3 anos de idade… Minha cabeça parecia girar, mergulhada em pensamentos estranhos.

Tia Neiva! Olhando no rosto daquele guarda que tanto mal me fazia, maltratando-me e me espancando, fixei meus olhos nos seus olhos, que pareciam fulgir de tanto ódio, e falei firme para o delegado:

– Sim, doutor, fui eu quem matou aqueles dois homens. Porém, acredite, não conheço a moça e tampouco sabia a razão daquele ataque. – E continuei relatando tudo o que se passara e o que eu sabia.

Enquanto eu fazia o relato, assumindo toda a culpa pelas duas mortes, pude ver que o ódio de meu carcereiro se abrandava. E o delegado acreditou em tudo que falei. Eu tremia de medo, pois agora aquele homem sabia que eu o havia reconhecido. Pensei que, já que assumira toda a culpa, ele poderia piorar o tratamento que me dispensava, vingando-se da morte do irmão e da desgraça da sobrinha. O delegado, que tinha estado a nos observar, perguntou:

– Tens alguma coisa contra ele?

– Não, senhor delegado, nem o conheço.

– Ele é irmão de tua vítima – afirmou o delegado.

– Meus Deus! – gritei – Agora entendo tudo melhor!…

Saí dali pensando no que havia feito. Não dissera ao delegado que fora o guarda o autor do crime. Não entendia bem porque me acovardara, mas achei que tinha sido melhor assim. Certo dia, fui novamente chamado à presença do delegado. Notei a presença, em seu gabinete, de uma jovem loura, que pensei fosse sua filha. Ele me disse que eu já tinha direito a uma folga e poderia sair, e ficou conversando mais algumas coisas comigo. Por fim, perguntou à mocinha se ela me conhecia. Ela respondeu, sorrindo com naturalidade, que nunca me vira. E eu também disse que não a conhecia. O delegado ficou pensativo e me mandou sair. Sair… Para onde? O desastre daquela situação havia sido completo: eu, preso; minha esposa, que não acreditara em meus protestos de inocência, fora embora, com toda a família, para outro estado, e eu nem sequer sabia seu endereço. Mesmo que soubesse, como iria encará-los, se não acreditavam em mim? O desespero tomou conta de mim, e sentei-me, chorando convulsivamente. Depois de algum tempo, consegui me acalmar, mas sentia que a revolta estava tomando conta de todo o meu ser.

Já se haviam passado dois longos anos. Quanta coisa tinha acontecido… Neste período, somente o meu sogro apareceu, poucas vezes, mas permanecia calado, sem forças para me falar. A sua visita até me fazia mal, pois eu sabia que ele escondia de mim seus sentimentos. Ele também não acreditava em mim! Condenava-me e sentia revolta pelas faltas que acreditava ter eu cometido. E isso tudo produzia uma grande revolta em mim. Quando ele ia embora, deixava-me mergulhado no desespero. Ó, meu Deus! Um momento, um simples momento de ira causara a destruição de duas famílias!…

Numa noite, após um dia em que recebera a visita de meu sogro, só consegui dormir depois de muitas horas lutando contra a revolta que teimava em me dominar. Dormi profundamente e sonhei… Sonhei que era um grande senhor de engenho e José – o meu vizinho – era um irmão muito querido, que assumia a responsabilidade por todas as loucuras que eu cometia. Mais do que um irmão, era um amigo que eu tinha. Nicácio – a minha vítima – e seu irmão – meu carcereiro – eram nossos vizinhos, mas nós os maltratamos muito. Eles eram honestos e muito mais trabalhadores do que nós. Como resultado disso, suas propriedades eram bem maiores do que as nossas, e melhores. Mas eles eram perversos com os escravos, que vivam tristes em razão dos maus tratos que recebiam. Ainda sonhando, caminhava pelos campos quando encontrei uma linda moça – aquela jovem que eu vira na delegacia – e nos falamos. Era filha de Nicácio, e sentimos uma forte atração um pelo outro. Estávamos apaixonados e, embora contra a vontade de Nicácio, acabamos nos casando e tomei todas as propriedades de meu sogro. Para isso, após algumas desavenças, havia matado o irmão de Nicácio – meu carcereiro – e, com tantos infortúnios e contrariedades, Nicácio ficara louco. Assim, assumi toda aquela fortuna. Para atenuar meus crimes, a única coisa que fazia era tratar bem daquela família. E meu sonho continuou, Tia, até a data atual, recaindo tudo sobre a minha pessoa. Acordei e senti alívio. Não sabia nada sobre o que continha de real aquele sonho. E, quando vi meu sogro, novamente vieram à minha mente aqueles personagens do sonho: ele era um homem cheio de maldade, forte, e me induzia a cometer muitas maldades. Agora, ali à minha frente, com aquele ar compungido… Comecei a pensar no que o sonho me mostrara e passei a entender melhor o que me acontecera. Certamente, se tudo aquilo era verdade, se no passado havíamos cometido tantos crimes, era natural que, pela Lei de Causa e Efeito, aquelas nossas vítimas houvessem voltado e fizessem suas cobranças. Essa idéia foi fazendo uma modificação em mim. Deixei de ser aquele homem revoltado, triste, e passei a me relacionar melhor com os outros. Já sorria, era receptivo a confidências e fazia amigos. Enfim, um raio de sol iluminou aquele mundo em que eu estava perdido na minha dor.

Tia Neiva, o Homem não pode se queixar de Deus. Onde quer que ele vá, ali encontrará honestidade e tudo quanto precisa para as suas afirmações. Não sentia mais saudades. Em cada presidiário eu via um senhor de engenho, tal foi minha afirmação. Um dia, senti forte dor de cabeça e fui levado para um pequeno ambulatório. A dor era intensa, e me desinteressei de tudo. A medicação que me deram para aplacar a dor fez com que eu caísse em profundo sono. Então, comecei a sonhar… Ó, meu Deus! Vi alguns homens, que me pareceram sacerdotes, vestindo trajes brancos, operando minha cabeça. Realmente, depois que acordei, a dor tinha passado e nunca mais voltou.

Certa vez, estava eu no grande pátio do presídio quando notei um jovem, com mais ou menos 30 anos de idade. Ele havia matado seu próprio pai e, diante disso, senti, como todo mundo sente, repulsa pelo rapaz. Mas, alguma coisa dentro de mim venceu aquele julgamento, e me acerquei dele, perguntando:

– Como você está?

– Como poderia estar? – Ele começou a chorar e, entre soluços, continuou – Você sabe que eu sou um assassino? Matei meu próprio pai!…

Respondi, com firmeza, que eu não acreditava e que seu caso deveria ser mais ou menos parecido com o meu. Ele não quis saber como fora o meu caso e continuou sua narração:

– Ele viva bêbado e batia muito em minha mãe. Um dia, no auge da violência, estava a ponto de matá-la, quando interferi. Ele se voltou contra mim, dizendo que me odiava e, da mesma forma que matara meu pai, ia me matar. Eu me surpreendi, pois sempre o considerara como pai. Pensei que era fruto do seu estado de embriaguez e, enquanto ele, trôpego, tentava me alcançar, perguntei a minha mãe se era verdade. Ela confirmou. Havia dito a ele há trinta dias, pensando que ele a abandonaria. Naquele instante de desespero passou em minha mente toda a minha triste infância, toda a nossa miséria. Minha mãe, de cabeça baixa, deixara-se cair em um canto. Foi quando, com todo o ímpeto de um ódio profundo, aquele homem se lançou sobre mim. Sem pensar, num acesso de violência, defendi-me e lhe apliquei um golpe que foi fatal. – Abaixando a cabeça, deu um soluço desesperado e concluiu: – Apesar de tudo eu não tinha coragem de matá-lo! Porém, aquilo aconteceu e sei que ninguém vai acreditar em mim…

Fiquei pensando que as coisas aconteceram com ele tal como haviam acontecido comigo. Senti um desânimo, mas me compadeci daquele companheiro de infortúnio e lhe disse algumas palavras de consolo. Tornamo-nos amigos pela dor. E assim como ele, muitos se chegaram a mim, sempre carregados de ódio, de revolta, mas sempre recebiam minhas palavras para aplacar o desespero que sentiam. Nossa vida, ali, não tinha muitas novidades, a não ser a malvadeza de umas pessoas com outras. As suas dores, as suas paixões, sempre me encontravam disposto a dar um pouco de conforto àquelas pessoas, graças a Deus!

Certa noite tive um sonho com uma casa azul, uma casa muito azul, cuja vida de seu dono era um mistério. Era riquíssimo e recebia visitas que aparentavam alto nível social, dizendo-se estrangeiros, de diversas partes do mundo. Um verdadeiro enigma. Meu sonho continuou, e me senti penetrando naquela imensa e misteriosa casa, com a sensação de que era guiado por alguém que me falava:

– Procure agir depressa, enquanto você dispõe de tempo! Viu como é perigosa uma cabeça cheia de sonhos? Lembra-se quando este homem o convidou para trabalhar com ele?

– Sim, – pensei – poderia estar bem melhor.

– Como ninguém fugirá às surpresas da noite com as mãos desocupadas, ajude o próximo enquanto permanecem ao seu lado as oportunidades, dentro de suas possibilidades.

– Eu ajudar este homem? Quem sou eu? E como?

Ao acordar lembrei-me de que não soubera que espécie de trabalho ele iria me dar. Ainda deitado, lembrava com toda a clareza daquele sonho – “Procure agir depressa enquanto você dispõe de tempo…” Ó, meu Deus! Sonhos, somente sonhos… Aquela voz voltou em outro sonho:

– E, também, só damos lições de vida, enquanto o livro das provas repousa em nossas mãos! Aprender é fácil, é uma bênção. O que não é fácil é saber emitir o ensinamento como uma bênção. Acerte as contas com os seus vizinhos enquanto a hora lhe é favorável. Amanhã, em todos os quadros podem surgir transformações. A mente do Homem é imprevisível. Dê suas lições sensatamente, reconforte os desesperados…

Sonhos… Tudo sonhos, pensava eu, sem sair da cama.

O delegado sempre vinha conversar comigo. Nós nos afinávamos bem e eu tinha muito respeito por ele. Com carinho, ele me contava muitas coisas, boas ou ruins. Um dia, ele me disse:

– O homem da casa azul foi detido. Ele era um contrabandista e continuaria seus crimes se não tivesse matado seu cúmplice.

– Meu Deus! – gritei, assustando o delegado.

Então comecei a contar-lhe, desde o princípio, sobre os meus sonhos, sem saber qual seria sua reação. E qual não foi o meu espanto quando ele me disse, todo esperançoso, que eu era um grande médium e me convidou para participar de uma sessão espírita.

– Sim, – pensei – é uma saída!…

No dia combinado, como ele havia determinado, fomos ao centro espírita. Era um grande terreiro e, no salão, a mãe de santo veio ao nosso encontro, dirigindo-se ao delegado. Ficaram um pouco distante de mim, conversando baixinho. Por fim, me chamaram e me conduziram até um homem que estava sentado em um toquinho. Estava incorporado, pelo que pude ver, e tão logo me sentei à sua frente, ouvi ele me falar. Sim, foi com muita surpresa que ouvi aquela voz, a mesma voz que me falava em meus sonhos, me dizendo:

– Nada tens a fazer aqui. Fique naquele canto e espere até que o delegado vá embora.

– Sim! – respondi depressa, no meu espanto.

O delegado me perguntou se estava tudo bem e respondi que sim. Iria ficar apenas vendo como funcionavam os trabalhos. E assim fiz. Como era a primeira vez que estava num lugar daqueles, muito apreciava tudo, achando bonito e complexo o que via. O delegado foi falar com aquela entidade que havia falado comigo, e vi que ficava muito emocionado ao ouvir o que aquele homem incorporado dizia. Naquele momento não podia ouvir nada. Só muito mais tarde, depois de passados muitos anos, é que ele me revelou que aquela voz lhe dissera que eu era filho espiritual dele e que teria, como missão, me ajudar na dolorosa faixa cármica que eu estava atravessando, porém sem que eu soubesse a verdade! Por isso se explicava a grande afinidade que sentíamos, desde o primeiro instante em que nos encontramos em tão triste momento. Quando voltamos, o delegado, demonstrando grande emoção e já confiando em mim, não me acompanhou até a portaria do presídio. Para minha surpresa, havia sido mudada a guarda da noite e os que ali estavam não me reconheceram e acharam que eu estava mentindo quando lhes disse que havia saído com ordem do delegado, em companhia dele. De nada adiantou. Maltrataram-me e me colocaram numa cela solitária, incomunicável. Tinha esperança de que, quando chegasse o pessoal de dia, o caso fosse esclarecido. Mas, então, vi que aquele carcereiro – minha vítima do passado – não apagara seu ódio por mim. Ele nada disse sobre a minha situação e, assim, passei vinte e quatro horas naquela solitária, incomunicável, sem ter quem me ajudasse. O que valeu foi o delegado ter ido à minha procura e descobrir toda a trama. Ele ficou furioso, pois sentiu que aqueles guardas, apesar de me conhecerem, tinham um inexplicável ódio por mim. Tinham prazer em me aplicar castigos e sofrimentos. Repreendeu severamente aqueles homens e me mandou para a enfermaria, a fim de me tratar de alguns ferimentos. Cheguei ao ambulatório e me deitei para descansar um pouco, após ter sido atendido pelo enfermeiro. Estava cansado e não sentia ódio pelos meus algozes, mas sim descrença, uma profunda descrença de tudo, abalando até a confiança que sentia em mim mesmo. E foi nesse estado de espírito que me desprendi do meu corpo para receber mais alguns importantes ensinamentos. A partir desse dia, tudo mudou para mim. Passaram a me respeitar mais, e olhava aqueles meus carcereiros – homens, pobres homens que só tinham ódio e maldade em seus corações – com compaixão.

Certo dia, estava sentado, envolvido por meus pensamentos, contemplando minha situação – matara um homem e pagava por dois crimes – quando senti uma aproximação. Pelos arrepios de meu plexo, senti que não era de boa natureza. E, realmente, aproximou-se o irmão de minha vítima, meu carcereiro, que me disse baixinho:

– Você sabe que hoje completam 15 anos do seu bárbaro crime?

Minha cabeça rodou e tive, pela primeira vez, a sensação de que eu era realmente um assassino. Tremi diante daquela acusação e pedi forças a Deus para que perdesse o medo e pudesse enfrentar aquele meu cobrador. E fui ouvido, pois falei com firmeza àquele homem que tantas torturas me fizera sofrer:

– Como se atreve a me dizer estas coisas se você sabe tão bem quanto eu toda a verdade? – falei e sentia como se o espírito de José estivesse falando por mim – Como pode ser tão cruel, tão vingativo, quando sabe a verdade sobre mim? Sua sobrinha deve ter contado a você que eu nunca a vira e você, com suas próprias mãos, vingou-a do homem que a desonrara. E eu paguei pela responsabilidade de mais um crime para que você ficasse em liberdade, já que eu não poderia devolver a vida de seu irmão. Não tenho ódio em meu coração, e só acho que eu deveria ser inocentado do crime de ter seduzido aquela pequena jovem. Meu Deus! Fui difamado sem sequer tê-la conhecido… A minha esposa não acreditou em mim e sumiu, carregando minha filhinha Nice, com apenas três anos de idade. Até hoje, não sei nada delas, e você vem me dizer que estou há quinze anos neste cárcere!… Sim, depois que meu sogro morreu, não tive mais qualquer notícia delas… Há quanto tempo? Nem sei mais! Você me inutilizou, me torturou. Pago pelo seu crime e tenho que ouvir suas calúnias. Tenho um rim deslocado, que me maltrata, pelas pancadas desferidas por seus punhos covardes. Ma, agora, basta! Até hoje, foram os seus dias. De agora em diante, serão os meus dias!

Avancei sobre ele que, apavorado por ver minha reação, soprou o apito e tentava sacar a arma quando o agarrei e quebrei seu braço, derrubando-o com um golpe que o fez gemer de dor. Foi um grande tumulto e outros presos acorreram, vindo a guarda em pé de guerra, com medo que se alastrasse uma rebelião no presídio. Subi para um degrau e, ali no alto, comecei a falar. E parece que chegara a minha hora, pois Deus, mais cedo ou mais tarde, toma o partido da inocência oprimida, e todos pararam para me ouvir. Eu falei para o meu carcereiro que, gemendo, estava ali parado, amparado por outros sentinelas, e disse, como se estivesse manifestado pelo Espírito da Verdade:

– Sofri! Sofri suas injúrias, realmente, nestes quinze anos de tolerância e de dor. Há quinze anos você me massacra nesta cela e esqueceu de que eu o reconheci desde o primeiro momento em que o vi. Porém, não queria que sofresse e, para tentar compensar a morte de seu irmão em minhas mãos, assumi sua culpa. Você também sabia que nem sequer conhecia sua sobrinha. E, enquanto eu me defendia do ataque de seu irmão, naquele domingo fatídico, você matou o meu vizinho José, o verdadeiro sedutor de sua sobrinha. E eu estou pagando pelos dois assassinatos e pela sedução da jovem. Tenho sofrido muito, mas não o denunciei até este momento. Nunca quis lhe fazer qualquer mal, embora você deva ter consciência do seu procedimento e o do seu irmão naquela triste tarde, na minha casa!…

Ele não esboçava qualquer reação enquanto eu falava. De cabeça baixa, ele estava sob o jugo da verdade! Todos ouviam atentamente minhas palavras. Fui interrompido pela chegada do delegado, que foi pedindo calma e me disse:

– Tenha calma, João, que sei tudo a seu respeito!

E voltando-se para o meu carcereiro, que não conseguia manter-se firme, falou com aspereza:

– Quem deveria estar nesta cela era você! E ainda tem a coragem de zombar deste homem! Sim, somos todos filhos de Deus e não serei eu quem irá condenar sua conduta. Sei que cobra insensatamente, perdido no ódio, desse pobre homem que, em vidas passadas, foi seu algoz. Porém, tudo tem o seu preço e o seu fim. A vida não é, simplesmente, uma cobrança. Somos filhos de Deus, somos irmãos, e a finalidade da cobrança é a escalada para um mundo superior, é para nos unirmos em uma única família universal, sem peso na consciência. Quando você tiver a felicidade de conhecer os santos desígnios de Deus, aprenderá a ter amor ao próximo, como Jesus Cristo nos ensinou no Santo Evangelho. Fique sabendo que na cobrança sem amor as dores são repartidas! Todos somos imperfeitos. Como pode um homem se atrever a cobrar, com torturas, seu irmão, por um crime pelo qual foi ele próprio o único culpado? Sempre soube da sua vida, mas não quis interferir, para ver até onde ia sua inconsciência. Sempre fui de opinião que você não merecia estar aqui. Deus, o Grande Deus, nos admite nestes presídios para que o Homem pare e pense no que ele passa aqui. E é o que muitos fazem, lá fora, aos inocentes. Pessoas que pisam em seus próprios cadáveres!…

Quando percebi, Tia, todos estavam reunidos, ouvindo as palavras do delegado. Comecei a falar:

– Não quero afligir meus irmãos com detalhes de minhas torturas e, sim, lhes dizer que tudo tem o seu santo dia! Nem um só filho de Deus está perdido ou esquecido e só assim podemos compreender Sua bondade infinita. Sim, cada um de vocês, um dia, compreenderá. Chorei muito em minha cela! Chorei, desesperado, pensando estar esquecido até mesmo por Deus… Quantas noites me acordava sob o efeito de terrível pesadelo e, ao abrir os olhos, me deparava com você – e apontei para o abatido carcereiro – à beira da minha cama, com atitude de quem ia me matar. E eu? Eu nunca pedi que não o fizesse. Isso e muitas outras torturas que não direi agora, pois são por demais tristes para serem cometidas por um ser humano! São muitos os homens que se utilizam da calúnia para esconder seus crimes. Fingem e mentem tanto que chegam ao ponto de acreditar no que criaram suas próprias mentes sujas.

Fui interrompido pelo apito que nos chamava para a refeição, e aquilo quebrou nossa concentração. Todos se movimentaram, e os guardas foram levando o meu carcereiro para o ambulatório. Sentei-me ali mesmo e, novamente só, senti uma sensação de alívio, como que se um peso tivesse sido tirado do fundo de minha alma, e chorei. Chorei copiosamente. O delegado mandou me chamar e, quando cheguei, ele me recebeu com muita alegria, me abraçando e dizendo:

– João, cumpristes dignamente tua pena e a tua missão. Parabéns! Agora, és um homem livre!

A notícia me deixou meio tonto. Muitos presidiários e guardas vieram para se despedir de mim. Em meio a tantos abraços, só sentia aquele atordoamento e assim, sem saber exatamente quais meus sentimentos, saí daquela penitenciária, onde passara aqueles quinze anos que me pareciam uma eternidade. O delegado foi comigo até a rua e me abraçou, comovido, desejando-me boa sorte. Quando ele me deixou, fui até um banco que havia ali, próximo ao portão, e me sentei, tentando por minha cabeça em ordem.

– Para onde irei? – pensava – Como poderei viver, trabalhar, se poucos são os que confiam num ex-presidiário? Onde posso encontrar minha Nice, minha filhinha querida? Será que ela sabe da minha existência? Agora, com dezoito anos, será que ainda lembra de mim? Irá acreditar em mim?

Era uma avalanche de pensamentos que me deixava fora da realidade. Comecei, então, a falar em voz alta:

– Ó, meu Deus! Sei que fui assassino pela honra do meu lar, porém jamais desrespeitei alguém, principalmente uma mocinha!…

Nem senti quando o delegado, que se chamava Wagner, se sentou ao meu lado. Só ouvi sua voz amiga, que rompeu minha sintonia, dizendo:

Calma, João! Calma e esperança! Deus saberá te recompensar. Com certeza, está reservando um grande bem para ti…

É, doutor! Mas que será de mim agora? Sem lar, sem família, sem ninguém!…

De onde tu vieste, filho?

É uma longa história, doutor, e pode acreditar no que lhe vou contar. Eu nasci e vivi na roça, numa família unida, cuja vida era o celeiro e a lavoura. Trabalhávamos muito, mas tudo era feito na maior harmonia e todos, ali nas redondezas, eram amigos. Vivíamos na mais linda harmonia, sim! Havia muitas festas, mutirões, e formávamos um belo grupo. Certo dia, fomos para uma grande quermesse, numa festa realizada em homenagem à santa padroeira do lugar. Esses acontecimentos eram sempre marcados pela alegria e todos compareciam. Fomos para aproveitar a festa e levei minha noiva, Dorinha, um amor de mocinha, filha de um vizinho nosso. Logo que chegamos já fomos comprando bilhetes da rifa, cujo prêmio maior era um lindo cavalo, e, depois, fomos vendo as atrações da quermesse. Acercou-se de nós uma cigana, que era membro de um grupo que há alguns dias havia acampado por ali. Pediu minha mão para ler, mas eu não queria perder tempo com essas coisas, que achava tolices. Disse-lhe que não tinha dinheiro, mas ela pegou minha mão e disse apenas: “Vais viajar para muito longe e jamais voltarás!” Dorinha ficou triste, e começou a chorar. Aborrecido, falei com ela que a cigana tinha dito tudo aquilo só porque eu não deixara ela ler minha sorte. Ficara com raiva e tratou de criar um problema. Na verdade, só Deus sabe de nossa vida. Aquela cigana nada sabia sobre o futuro dos outros. Fomos interrompidos pelo resultado da rifa. Em meio a gritos e risadas, foram nos avisar de que o meu número havia sido sorteado e que eu devia ir buscar o belo animal. Entre palmas, saí dali montado no lindo cavalo manga larga, levando Dorinha na garupa. Já estávamos esquecidos dos maus presságios da cigana… Demos uma volta e apeei, para melhor examinar o cavalo que havia ganho. Com surpresa, senti-me angustiado quando olhei seus cascos e verifiquei sinais de uma doença – frieira maldita – que começava a aparecer. Estávamos acostumados com animais, pois tínhamos grandes tropas, criações de gado de várias raças, e sabia muito da vida da maioria deles. E sabia que aquele mal não tinha cura e que meu cavalo teria que ser sacrificado. Sem saber o que fazer, guardei segredo, para ver como resolveria a situação sem que os outros soubessem. Nem mesmo a Dorinha contei, mas ela notou que algo me perturbava. Disse-lhe que estava aborrecido com a cigana que a fizera chorar e não contei o motivo da minha mágoa. Chegamos em casa e meu pai e meus irmãos estavam me esperando, fazendo enorme algazarra pelo meu prêmio. Um irmão disse que era preciso examinar o cavalo, pois poderia Ter alguma doença e iria contaminar os outros. Respondi-lhe que já vira o animal todo e ele estava muito bem. Tínhamos sempre sido leais uns com os outros. A mentira, a inveja, nenhum desses sentimentos negativos achava guarida naqueles puros corações. Por isso, já alta noite, não conseguia conciliar o sono, com a consciência doendo por ter mentido. Levantei-me e fui até às cocheiras para ver novamente meu cavalo. Certifiquei-me que estava mesmo condenado, pois seus sintomas haviam se agravado. Então, tomei uma rápida decisão: coloquei-lhe a sela e, já que não poderia viver conosco, iria viver com ele, por este grande mundo, até que ele fosse levado pela doença. Eu não poderia sacrificá-lo e não deixaria que alguém o fizesse. Deixamos aquela região no silêncio da noite e ninguém nos viu sair. Cansados pelo movimento da festa, todos dormiam pesadamente, e não encontrei uma pessoa sequer no meu caminho. Doutor, lembro-me como se fosse hoje daquela caminhada para o desconhecido. Cavalguei sem parar, até que a fome me fez apear à frente de um restaurante da estrada, onde comi bastante, pois não sabia onde e quando iria comer novamente. Voltei a cavalgar e algo estranho aconteceu comigo, pois caí em sono profundo. Quando acordei, estava próximo a uma cidade sertaneja, inteiramente desconhecida para mim. Fiquei atônito. Avistei um grande circo e fui até lá, entrando no acampamento puxando meu cavalo pelas rédeas. Algumas pessoas saíram das barracas e foram ao meu encontro. “De onde vem?” perguntou alguém. Contei-lhes de onde vinha, mas não lhes disse que não sabia onde estava. Não sabia se podia confiar neles. “Você quer vender seu cavalo?” perguntou um homem, aproximando-se e começando a examinar o animal. Fiquei com medo que descobrisse a doença do cavalo e me afastassem dali. Mas, com grande espanto, quando olhamos os cascos do animal, verifiquei que não havia o menor sinal da doença fatídica. Não podia explicar o que havia acontecido, mas era apenas mais um dos fatos inexplicáveis que estavam me acontecendo. “Não, ele é a única coisa que tenho, e pretendo voltar o mais depressa possível para minha cidade.” – respondi. “Se quiser voltar para sua região, moço, vai ter que vender o cavalo” – disse o homem – “Você está muito longe de casa e este animal não ia agüentar uma viagem longa dessas…” Longe? Mais um mistério para mim. “O senhor conhece a minha região?” “Sim, de ouvi dizer. Fica há mais de oitocentos quilômetros daqui. Na verdade, só conhecemos até perto do convento.” Convento? Minha cabeça estava girando. O convento ficava muito longe de minha casa. Como pudera chegar tão longe, sem Ter a menor noção do tempo e do espaço? “É, moço, se quiser ficar, estamos precisando de alguém como você para trabalhar. Aceita?” Com a mente envolvida por tão denso mistério, decidi aceitar a oferta e comecei a trabalhar com aquela gente. Havia muito o que fazer, mas a idéia de voltar para casa estava fixa em minha cabeça, principalmente agora, que meu cavalo estava em perfeitas condições. O que estariam pensando meus pais? E Dorinha? Afinal, o que acontecera comigo? Estava sempre perdido no círculo vicioso dos meus pensamentos. Mas o tempo foi passando e me acostumei com aquela vida. Conheci uma moça muito agradável e nos apaixonamos. Casamos e tivemos um período muito feliz. Meus sogros eram como meus pais, e nos sentimos realizados quando nasceu minha querida Nice. O trabalho não me dava muito tempo para sair, mas já havíamos combinado de ir até minha cidade e nos confraternizarmos com minha família, tão logo Nice estivesse um pouco mais crescida. Passei a sonhar com essa viagem, embora não soubesse, por qualquer meio, o que se passara por lá em minha casa, desde que a deixara. Eram imagens do passado, e ia relegando minhas lembranças a um cantinho de minha mente, agora toda voltada para o meu lar e para minha querida família. Por fim, decidimos que chegara a hora e fizemos um almoço especial, para o qual convidamos meu vizinho José. Estávamos, também, festejando cinco anos de minha chegada ali. Porém, o destino foi mais forte que os meus planos. Estávamos almoçando quando a porta se abriu repentinamente e dois homens enfurecidos invadiram nossa casa e passaram a nos agredir. Procurei me defender, defender minha família, e a raiva me deixou cego! Também reagi com fúria e, quando dei conta de mim, um dos atacantes jazia morto e o outro havia fugido. José também havia recebido um golpe fatal. Esperei que minha família me defendesse mas, vítima de um ciúme profundo, minha esposa acreditou que tudo havia sido motivado por ter eu seduzido a filha de um dos atacantes, exatamente aquele a quem eu havia tirado a vida… O resto, o senhor já sabe, doutor!…

O delegado ficou de pé e, se voltando para um muro que estava próximo, gritou:

– Venha, Nice, venha abraçar o seu pai, pois parece que ele já vai embora outra vez!

Saindo de trás do muro, uma linda jovem se precipitou correndo e me abraçou. Eu, tonto, não sabia exatamente o que estava acontecendo. A jovem chorava e sorria, e me disse:

– Ó, meu paizinho querido! Não irás mais sozinho. Para onde fores, eu irei junto…

Minha emoção foi tão grande ao saber que aquela jovem era minha querida Nice que senti minhas pernas fraquejarem. Ó, meu bom Deus! Não há como descrever minha felicidade naquele encontro! Sentamo-nos novamente naquele banco, e ela me envolvia o pescoço num abraço. E foi contando muitas coisas novas para mim.

– Estou noiva do filho do delegado. Já marcamos nosso casamento para breve e logo iremos visitar meus avós, que estão à tua espera, ansiosos para te ver.

Olhei aquele rostinho lindo, os olhos brilhantes e, quase num murmúrio, perguntei:

– E sua mãe, onde está?

Ela baixou a cabeça e demorou um pouco a responder:

– Morreu!… Morreu de parto. Esperava um filho. Certamente, um filho que não era teu…

– Ó, meu Deus! – Gritei, sentindo uma dor em meu peito.

Virei-me para o delegado, sentindo meus olhos turvos pelas lágrimas.

– Que infelicidade, meu Deus! O senhor sabia de tudo, durante todo esse tempo, e não me disse nada… Por quê?

– Sim, meu bom amigo, não lhe disse nada para não aumentar seu sofrimento. Quando tive certeza de sua inocência, fui procurar sua família e lhes contei tudo. Naquele dia em que o levei àquele terreiro, a entidade de minha confiança me recomendou que eu nada lhe contasse. Até mesmo me revelou que você é meu filho espiritual, o que me deu alegria e angústia ao mesmo tempo, pois não poderia revelar este fato a ninguém enquanto você estivesse no presídio. Seria melhor para todos. E assim fiz…

Então, um carro parou perto de nós e dele desceu um jovem. Era o filho do delegado, o noivo de minha filha. Simpático, apertou-me a mão e, abraçando-me, disse que tinha um grande prazer em me conhecer e estava muito feliz com minha libertação. Fui para a casa de Wagner e me trataram com muito amor para que me recuperasse bem. Estava ansioso para voltar à casa de meus pais. Wagner conseguira o endereço e escrevera para eles, relatando o meu drama. Estavam, também, ansiosos para me ver. Em poucas semanas, Nice se casou e nos preparamos para a viagem. Foi com grande alegria que chegamos àquele lugar onde eu passara meu primeiro período da vida. Meus pais, já bem idosos, felizes e emocionados, me receberam com muito amor. Apenas meu pai me repreendeu pelo que eu havia feito:

– Veja, meu filho, o que acontece com os grandes médiuns sensitivos que fogem à sua missão!

– É, meu pai!… Eu tive que ir em busca do meu carma, dos meus cobradores…

Minha volta foi muito festejada. Meus pais e meus irmãos resolveram fazer uma reunião para me homenagear. Os amigos da família, muitos dos quais nem me haviam conhecido pessoalmente, compareceram e pude reviver aquela mesma alegria e confraternização que existia quando eu era jovem. E me reencontrei com Dorinha! Embora magoada pelo que eu lhe fizera, guardava o mesmo amor e parece que sabia que eu um dia voltaria. O tempo deixara suas marcas, mas aquele olhar meigo ainda era o mesmo que me emocionara naquele passado tão distante… Apesar do que eu havia feito, ela não me repreendeu, não me falou dos pesadelos que tivera. Apenas me olhou e, naquele momento, senti que também eu nunca pudera amar ninguém mais do que a ela. Num curto espaço de tempo, casei-me com Dorinha. Então, vivi um período de felicidade, sentindo um bem-estar tão grande que, por vezes, sentia medo de que tudo se acabasse. Tivemos três filhos, e o mais velho chamou-se Wagner, em homenagem ao meu querido amigo delegado, o meu pai espiritual que tanto me ajudara, e que se aposentara e fora viver com o jovem casal, Nice e seu filho, já formado em Advocacia. Nice também teve um filho e, junto a minha família, com meus filhos e meu neto, achava-me recompensado de todos os meus sofrimentos. Meu bom Deus me havia dado em dobro por tudo que eu passara… E assim transcorreu aquela nova etapa de minha vida, até que chegou o momento de partir, o grande dia, o dia do meu desencarne! Havia chegado ao fim de minha missão, de minha história. Era o momento de partir para Deus! Tive uma febre muito alta e fui perdendo a noção das coisas. Em meu corpo ainda, respirava fracamente e ouvia, distante, vozes, gritos e soluços. Aos poucos, tudo foi desaparecendo e segui o meu destino. Não sei bem o que aconteceu, mas me lembro que despertei em um local desconhecido, com a sensação de estar só. Não via ninguém e, quando falei, somente um eco muito forte respondeu. Parecia ouvir chamados e sermões, mas me sentia em completa solidão. Após um período, que não sei determinar quanto tempo durou, naquele local, ouvi uma voz que dizia:

– Passageiros que partem para a Terra! Concentrem-se para descer!…

Preparei-me para obedecer quando uma voz me falou, e jamais esquecerei o que disse:

– João Amando da Silva! Não precisa se preocupar. Fique onde está. Logo uma equipe de médicos estará aqui e, em breve, você será conduzido ao verdadeiro mundo dos espíritos. Não voltará à Terra, porque você tem bônus e não ficará vagueando.

Senti-me emocionado, mas uma ligeira dor cortou meu coração – a saudade dos que deixara na Terra! Lembrei-me das palavras de Jesus: “Deixem os mortos enterrarem seus mortos…” De repente, chegou aos meus ouvidos o rumor de uma queda d’água. Sem saber como, eu estava me aproximando do som e, pouco depois, surgiu diante de meus olhos uma cachoeira, num espetáculo deslumbrante de selvajaria e desordem, uma branca espuma dançando entre os penhascos. Era um cenário maravilhoso. Havia um caminho, por onde fui andando, acompanhando o leito do rio, e fui penetrando na floresta, enquanto um vento estremecia as copas das árvores e as folhagens balançavam como que descobrindo a brisa da manhã. Fóra a cachoeira, tudo era silêncio e harmonia ao meu redor e eu respirava aquela brisa, que corria em todo o meu ser. Sentia-me embevecido por tudo aquilo. Até hoje não encontro palavras ou analogia para descrever a felicidade e a harmonia que sentia ali. Aqui e ali aparecia a Terra, manchada pela luz do Sol, e, ao mesmo tempo, parecia ir se distanciando.

A harmonia resulta do acordo perfeito entre nossa mente e o nosso Sol Interior. A minha freqüência assídua às sessões espíritas ajudou-me muito, pois o esclarecimento me orientava por onde devia andar, por impulsos vindos do perispírito, através dos plexos correspondentes. Como sabem, somos ligados ao corpo pelo cordão fluídico e este só se desliga com a morte. Logo após a morte nos sentimos leves como uma pena. Por isso, entendi o que se passara comigo. Tive a certeza de estar ali para sempre. Não tinha dúvidas. Tinha feito o meu desencarne e por isso me sentia tão leve. Sim, porque o plexo físico ou centro nervoso é o plexo das aspirações das grandezas da Terra. Ele pesa e nos desarmoniza. Eu estava, agora, naquela situação magnífica que acontece ao Homem quando ele se desloca da escravidão do seu corpo material. Sim, a vida é formada pelos movimentos alternativos de suas forças e esta constante vibração constitui a grandiosa obra da transformação universal. Naquele bailado de luzes e na ternura daquela brisa, pedi a Deus que me despertasse do torpor que sentia. Sem noção do tempo ou do espaço, ouvi uma voz que despertou em mim, dizendo:

– João! Estás chegando!… Recebestes o aroma das cachoeiras e das matas frondosas. Enchestes o teu novo plexo de prana do teu espírito evoluído. Receberás de Deus o que fizestes por merecer…

Uma súbita transformação e me vi em um grande salão, onde pessoas subiam e desciam, parecendo todos terem vindo da Terra. Ali, um grupo de senhores estava à minha espera. Era uma família formada. Juntei-me a eles e entramos numa linda amacê, rumando para o nosso destino – uma cidade colonizada, para a qual não encontro palavras capazes de descrevê-la, tão bela era ela. Para ali só vão aqueles que não têm mais qualquer reajuste a ser feito na Terra. Comecei a recordar daquela grosseria no presídio, de tudo pelo que havia passado. Porém, imediatamente tive consciência de que atravessara, sem revolta, toda aquela missão que Deus me havia confiado. Aquele meu cobrador, que não soubera aproveitar a oportunidade oferecida pelo Divino e Amado Mestre, iria ainda penar por muito tempo, até que brotasse em seu coração a divina semente do amor, que lhe daria a libertação. Já havia pago pelos meus crimes e nada mais me restava a fazer na Terra, a não ser trabalhar na Lei do Auxílio.

Adeus, meus irmãos! Encontro-me na Mansão dos Nicipe.

Com carinho, a Mãe em Cristo,

TIA NEIVA

Seja bem-vindo ao vale dos deuses!